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Na casa mundo do compromisso chega Guterres o campeão da conciliação


À partida estava derrotado, não era mulher nem do Leste. Mas deram-lhe um palco, o suficiente para se mostrar o que era: o melhor
As palavras foram de um, em nome de todos: "Hoje, depois da sexta votação temos um claro favorito, António Guterres", disse o embaixador russo Vitaly Churkin, com seus 14 colegas do Conselho de Segurança à volta. E quando acrescentou "espero que amanhã o voto seja por aclamação", na cara da embaixadora norte-americana Samantha Power rasgou-se um sorriso. O mundo da ONU é dirigido com cuidados, não tanto de agradar a todos mas fazendo questão de que ninguém poderoso seja forçado. Por isso no topo do poder, o Conselho de Segurança, esse ajustamento é feito com o direito de veto dos membros permanentes. As palavras do russo e o sorriso da americana, ambos virados para o mesmo objetivo - a eleição do secretário-geral -, significaram que o compromisso fora conseguido. Guterres jogava, afinal, em casa. O compromisso é a sua arma favorita.
Em fevereiro, a RTP levou a estúdio uma entrevista de conjunto com dois ex-primeiros-ministros que se tinham demitido do cargo e que fizeram carreira em prestigiados organismos internacionais. O mais novo, 60 anos, Durão Barroso, fizera dez anos de presidente da Comissão Europeia, e António Guterres, de 67, foi também dez anos alto-comissário para os Refugiados, na ONU. Ainda não se sabia da contratação polémica de Durão para o banco Goldman Sachs, mas na entrevista ficou claro que ambos divergiam sobre o que pretendiam fazer da vida. O tema de discussão era os organismos internacionais: Durão Barroso defendeu o seu passado e António Guterres falou do seu futuro.
No princípio deste ano, o ministro dos Negócios Estrangeiros recebeu no Palácio das Necessidades alguns embaixadores e experimentados funcionários em instituições internacionais. Era uma reunião em pequeno comité, oito pessoas. Santos Silva mostrou a carta que recebera, como todos os ministros dos Estrangeiros, em todo o mundo, endereçada pela Assembleia Geral da ONU: 2016 era ano de eleição de secretário-geral, estaria Portugal interessado em apresentar um candidato? Aquela reunião era para fazer a primeira avaliação das probabilidades de sucesso de um português. E o segredo de polichinelo da vontade de um português concorrer estava quebrado pela presença de António Guterres, naquele dia, ali.
Os comités alargaram-se, chegou a haver vinte pessoas nas reuniões que se prolongaram até ao verão. A estrutura criada por Santos Silva era coordenada por José de Freitas Ferraz, diretor do Instituto Diplomático, que além de embaixador trazia o acrescento de já ter trabalhado como o candidato em questões internacionais - fora assessor diplomático de Guterres quando este foi primeiro-ministro (1995-2002). Em algumas reuniões, esteve também presente o embaixador português na ONU, Álvaro Mendonça e Moura, experimentado conhecedor da casa onde o candidato ia apresentar provas. Não se metem 193 países numa casa de vidro sem se ter hábitos arreigados e é avisado sabê-los respeitar.
António Guterres trazia um currículo que bebia nos bancos da faculdade, onde fora o melhor aluno do Instituto Superior Técnico, quando concluiu o curso de engenheiro eletrotécnico, em 1971. Tinha um à-vontade na relação com os tenores internacionais que exibiu logo nas semanas iniciais em que presidiu ao governo. "Em 1995, numa reunião do Conselho Europeu, no meio de um despique aceso entre o presidente Chirac e o chanceler Helmut Kohl, que não tinha nada a ver connosco, Guterres permitiu-se fazer uma sugestão", lembra o embaixador Francisco Seixas da Costa. "Confesso que me inquietei um pouco, ele não conhecia o meio, mas exibiu um sorriso conciliador e os outros dois aceitaram-lhe o conselho..."
A eleição de secretário-geral deste ano iria ser em fórmula nova, fruto das muitas críticas feitas ao Conselho de Segurança, por os cinco membros permanentes (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China) serem "mais membros" do que os outros. A prestação de provas dos candidatos a secretário-geral ia ser, em 2016, frente à Assembleia Geral. Se os 15 membros do Conselho de Segurança é que elegiam (e com direito de veto de qualquer dos cinco permanentes), o exame passava a ser público. Claro que isso não impediria acordos de bastidores, como se revelou no episódio dramático da semana passada, com o lançamento tardio da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva, vice-presidente do Comissão Europeia. Ela tinha o apoio da chanceler alemã Angela Merkl e do presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker, da direita europeia, com assentimento, pensou-se, da Rússia.
No pano de fundo das longas semanas de audições de candidatos havia uma daquelas indicações que, não sendo lei, espera-se que se tome em conta: na rotação do cargo, calhava agora a um originário de país da Europa do Leste a ser eleito. Havia, porém, um problema de atualidade histórica, porque muitos dos países europeus do Leste têm conflitos graves com a Rússia - e esta tem direito a veto...
Entretanto, talvez para ultrapassar isso, o ainda secretário-geral, o sul-coreano Ban Ki-moon, defendeu a eleição da primeira mulher para o cargo. Essa nova indicação levou ao aparecimento de fortes candidatas, uma argentina, uma neozelandesa... E sublinhou a candidatura de Georgieva, que acumulava os dois pressupostos, do Leste Europeu e mulher, confiando em hipotéticos acordos da União Europeia que demovessem a Rússia do veto.
Nas reuniões no Palácio das Necessidades com António Guterres os conselhos eram mais sobre "o que não fazer", para não ferir os hábitos da ONU. Sobre o aluno, apesar das preocupações por não colar com o retrato preconcebido, feminino ou europeu de Leste, a esperança era muita. Se esses pressupostos incomodavam, a fórmula de exames dava a António Guterres a possibilidade de ter palco.
Em bom francês (que lhe vem da geração que é a sua), em bom inglês e espanhol, ele derrotou os seus nove adversários, em seis sucessivas votações. Passou a imagem do conciliador que sempre foi. Primeiro-ministro socialista, ele montou com o líder de oposição Marcelo Rebelo de Sousa um grupo de trabalho comum para a política europeia. Combinando em casa, aprende-se a singrar lá fora. Em 2000, numa cimeira de Lisboa, a Europa tinha um problema: Jacques Chirac recusava-se a fazer a foto de líderes europeus com o austríaco Wolfgang Schüssel, que era da extrema-direita. Estava tudo previsto: Guterres combinara a visita oficial do presidente mexicano Ernesto Zedillo a Lisboa. Este foi convidado para a foto e o presidente francês não pôde esquivar-se.
Evidentemente, Guterres não revelou esses pormenores no palácio de vidro, em Nova Iorque. Levou foi consigo a maneira de ser que o fez ser um conciliador.

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